O exercício do jornalismo requer bagagem intelectual e retidão ética, muito mais do que qualquer formação técnica. O Estado não pode estabelecer condições restritivas para o trabalho do jornalista, porque a profissão se confunde com o pleno exercício da liberdade de expressão. “Qualquer tipo de restrição configura controle prévio, que em verdade caracteriza censura prévia”, afirmou, nesta quarta-feira (17/6), o ministro Gilmar Mendes (clique aqui para ler o voto).Relator do recurso que discutia a obrigatoriedade de diploma de jornalista para o exercício do jornalismo, o presidente do Supremo Tribunal Federal foi seguido pela maioria dos ministros da Corte ao julgar que é inconstitucional a exigência prevista no Decreto-Lei 972/69. De acordo com o decreto, o exercício do jornalismo “requer registro prévio” no Ministério do Trabalho “que se fará mediante diploma de curso superior de jornalismo”.O ministro Marco Aurélio, que entendia que a regra é constitucional, ficou vencido. Para Marco, a exigência caracteriza uma “salvaguarda” para a sociedade. Os ministros Joaquim Barbosa e Menezes Direito não estavam presentes à sessão.Gilmar Mendes, em seu voto, lembrou do inquérito policial aberto em 1992 contra os jornalistas Alon Feuerwerker e Ricardo Anderáos, à época, respectivamente, diretor da Agência Folha e editor-assistente do caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo, pelo fato de que eles não possuíam diploma de jornalista.
O inquérito policial foi instaurado em razão do alegado exercício ilegal da profissão. Quando recebeu o inquérito, o Ministério Público de São Paulo pediu seu arquivamento com o argumento de que o Decreto-Lei 972 não foi recepcionado pela Constituição de 88. Mais de 17 anos depois, nesta quarta-feira, o mesmo entendimento foi firmado pelo Supremo.
“O caso revela que a exigência é restritiva até mesmo da liberdade de ir e vir, não apenas do exercício da profissão”, afirmou Gilmar Mendes.
O presidente do Supremo comparou a formação do jornalista à de um chef de cozinha ou de um profissional de moda. “Um excelente chefe de cozinha poderá ser formado numa faculdade de culinária, o que não legitima exigir que toda e qualquer refeição seja feita por profissional registrado mediante diploma de curso superior nessa área”, disse.
Os ministros definiram que a exigência não foi recepcionada pela nova ordem constitucional, especificamente em razão do inciso XIII, do artigo 5º, da Constituição. A regra estabelece que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.De acordo com o ministro Gilmar, o comando constitucional fixa uma reserva legal qualificada. Ou seja, diz respeito à fixação e aferição das qualificações profissionais exigidas para determinada atividade. “No âmbito desse modelo de reserva legal qualificada paira a questão da razoabilidade e da proporcionalidade das leis restritivas”, disse. Para ele, o legislador deve observar a razoabilidade das exigências para não pode transbordar os limites e ferir seu núcleo.
Ao acompanhar o relator, a ministra Cármen Lúcia anotou que a exigência não teria sido recepcionada nem mesmo pelas Constituições de 1967 ou 1969. O ministro Carlos Britto citou o nome de luminares da literatura, como Carlos Drumond de Andrade, Vinicius de Moraes e Otto Lara Rezende que não poderiam trabalhar como jornalistas em razão da restrição legal. Na verdade os exemplos citados eram escritores, escreviam em jornal, mas não faziam reportagem que é a atividade básica do jornalismo. Os ministros também rechaçaram a ideia de que a regulamentação evita o mau jornalismo. Pela decisão, a exigência não evita a possibilidade do exercício abusivo e antiético da profissão.
“A formação específica em cursos de jornalismo não é meio idôneo para evitar eventuais riscos à coletividade ou danos a terceiros”, disse o presidente do Supremo. Não faltaram lembranças a episódios como o da Escola Base e do Bar Bodega, exemplos de erros graves cometidos por jornalistas diplomados.Livre exercícioA decisão do Supremo ratifica liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes em novembro de 2006, que garantia até agora o exercício da profissão por aqueles que não são formados em jornalismo. Os ministros se debruçaram sobre recurso interposto pelo Ministério Público Federal e pelo Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no estado de São Paulo. Prevaleceu a alegação do MPF, de que o jornalismo é uma atividade intelectual, que prescinde de obrigação de formação superior.A polêmica em torno da necessidade de diploma de jornalismo para o exercício da profissão esteve presente na imprensa desde a edição do Decreto-Lei 972/69 — em plena ditadura militar — que regulamentou a atividade, mas ganhou força em outubro de 2001, quando o Ministério Público entrou com ação para derrubar a exigência de diploma.No dia 23 de outubro de 2001, a Justiça deu liminar para suspender a obrigação de ter diploma de curso de jornalismo para a atividade jornalística. A decisão foi da juíza da 16ª Vara Cível de São Paulo, Carla Abrantkoski Rister. Elaacolheu argumento do procurador da República André de Carvalho Ramos de que o decreto que regula a profissão não foi recepcionado pela Constituição de 1988.
A exigência foi cassada.A União e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) recorreram ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
No final de 2005, a 4ª Turma do tribunal derrubou a sentença de primeira instância e restabeleceu a obrigação de os jornalistas terem curso superior na área específica. O relator da matéria, desembargador Manoel Álvares, entendeu que o Decreto-Lei 972/69 foi, sim, recepcionado pela Constituição. Foi a vez, então, de o MPF recorrer ao Supremo. E sair vitorioso.Rodrigo Haidaré correspondente em Brasília da revista Consultor Jurídico